domingo, 24 de setembro de 2017

Manuel Monteiro



















DUPLICIDADE
um dia serei pomba outro serei bomba
noutros raiz comovida sedenta de vida
num tempo ave voadora quase sempre vencida

sou sempre o que me faço: um tiro um abraço
sou o que me desfaço onde morro e onde nasço

sou puta sou anjo de onde fujo e por onde ando
alfabeto secreto de longe e de perto
sou a madrugada sou tudo e sou nada

sou pedra sou grito só me aprisiona o infinito
sou bandeira traição coragem e maldição

sou a flor sem tempo a terra sonhada
sou tudo e sou nada
sou a mão que liberta e que de ódio te acerta

sou o que tudo produz sou o cego na luz
o que descobriu mundos e novas culturas
o que libertou e gerou escravaturas

falta-me ser o que ainda não fui:
uma sinfonia que se não alimente
da dor do teu dia
que eu sofra não porque tu sofres
mas que o teu cantar alegre o meu penar

um mundo onde eu possa chorar
não porque os homens morrem no mar
mas porque o poeta é feito da matéria insatisfeita
mesmo que no mundo reine a lei mais justa e perfeita




POEMA PARA PUBLICAR UM LIVRO

eu não devia estar aqui nem ali
talvez em sítio nenhum
ou então devia peregrinar a Rarogne
na pequena igreja de Rarogne
onde Rilke oferece os seus ossos
aos jovens poetas a quem não valeu

procuro um mecenas centenas de mecenas
um príncipe renascentista que pode ser
de Veneza ou da Reboleira
para libertar estes filhos tardios
(os poemas que me acariciam e estrangulam)
orçamento da gráfica já tenho e vergonha não me falta
meus senhores sou um poeta marginal
tímido e atrevido como todas as putas
que se vendem para sustentar seus filhos

(ah Rilke, Rilke, nem imaginas a vida vegetal dos poetas
depois de ti depois dos pré Rafaelitas e depois do Alba...)
cabrões malditos sem academias nem tenças
almas penadas neste bordel onde não há mecenas a quem louvar
senhor senhor sou um poeta esconjuro a minha arte
sou inofensivo à ordem vigente
rastejo e expurgo a minha rebeldia
esqueçam o que cantei o que vou cantar
Sou um cadáver um cadáver vivo e inofensivo
rezei e ninguém me valeu revoltei-me e riram-se de mim
experimentei a guerra caminhei na paz
agora é tarde para escolher um caminho

escolho apenas os meus poemas
contemplo esta foto da pequena igreja de Rarogne
onde Rilke escolheu a sua campa fria
imagino por onde andará o Sebastião Alba
(em Braga onde morreu como sem-abrigo
ninguém já se recorda dele)

verão a luz os meus poemas
ou se diluirão no fogo do silêncio?
 

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