quarta-feira, 27 de setembro de 2017

POUCO PASSAVA DAS OITO HORAS DA MANHÃ Odete Santos Silva
























Pouco passava das oito horas da manhã, o transito para a Ponte estava caótico, carros dum lado, carros do outro, carros no meio.

Esperei calmamente a minha vez para conseguir entrar na fila. Junto duma passadeira para peões, parei civilizadamente e deixei um espaço para alguém que quisesse atravessar a rua.

Eis senão quando um carro vindo de lá detrás me ultrapassa e se posiciona à minha frente em cima da passadeira.

Como o transito estava parado, saí do meu carro e dirigi-me ao carro da frente 
– o senhor já viu o que fez? Ultrapassou toda a gente e não satisfeito estaciona em cima da passadeira

Sem esperar resposta voltei para o meu carro. 

Acto imediato o jovem saiu do carro dele, chegou junto de mim a pedir-me para baixar o vidro da janela e em seguida disse-me com ar simpático 

– Desculpe vóvó, desculpe, juro que não me apercebi. Olhei para ele e disse-lhe com ar mais ou menos sisudo
- oiça, você hoje já me estragou o dia duas vezes! 
- Duas vezes, como assim? 
- Olhe, primeiro, ultrapassou-me e agora está a chamar-me de vóvó!

Ele levou as mãos à cabeça e exclamou 

- óh Vóvó eu sou um desastrado, sou mesmo um desastrado, um desastrado... 

entretanto a fila andou e eu ria divertida. Claro que gosto de ser vovó.








O MAIS VELHO DA ALDEIA
É o mais velho da aldeia. Diz ter mais de 100 anos, não sabe ao certo quantos, mas são mais de 100 com toda a certeza. Vivos, tem 11 filhos, 35 netos, mas foram mais...
Um dia juntou-os a todos para lhes contar uma história. A história da sua vida. Até então nunca lhes tinha dito nada.

Sentado, numa mesa ao nosso lado, um homem de idade avançada, almoçava um cozido à portuguesa, acompanhado de um bom jarro de vinho tinto.

Nós, estávamos ali para  para fazer o mesmo. Comer um cozido à portuguesa. Falávamos animadamente de tudo um pouco enquanto esperámos  ser servidos, quando a voz do nosso vizinho se fez ouvir: os senhores são de Lisboa? Nem precisam dizer que bem se vê. Somos sim, respondemos, mas adoptamos uma aldeia aqui perto - sem querer ser indiscreto, onde é? Lá dissemos onde era a nossa aldeia, -  fizeram mal, vinham para aqui, esta é a melhor aldeia das redondezas e depois, estou cá eu. Roídos de curiosidade, indecisos entre comer o excelente e bem servido cozido à portuguesa que já estava à nossa frente e ouvirmos a história do nosso vizinho que entretanto queria que bebêssemos um copo do seu vinho. Recusámos com um – obrigada, vamos fazer o mesmo. Ele insistiu, - vamos brindar com o meu vinho para ter a certeza que os senhores voltam. E foi assim que, depois de brindarmos, ficámos a saber a sua história:

- Até aos 19 anos vivi na casa dumas senhoras, gente de bem, gente abastada. Duas senhoras, solteironas, já nem lhes lembro o nome. Nunca soube se tinham família. Nunca por lá vi ninguém. Durante muitos anos pensei que era parente delas, sabia que havia qualquer coisa estranha no meu nascimento, mas nunca me interessei em saber. Um dia elas disseram-me que me tinham ido buscar à roda - os senhores não sabem o que era a roda? Claro que não sabem, vêm da cidade, ( por acaso até sabia).

A roda, era a roda dos enjeitados, onde as senhoras da alta sociedade iam largar os filhos em segredo para se limparem da vergonha e da desonra e assim ficarem de “consciência tranquila” por saberem que seriam cuidados e, até quem sabe, adoptados. Disse-lhe. Ele continuou , quase sem me ligar .... pois eu fui libertado da roda por aquelas duas senhoras que me disseram que eu trazia ao pescoço um papel com várias coisas escritas que os ratos roeram. Só escapou mesmo, o meu nome, Francisco Paulo, que se vos apresenta.
É assim que eu Francisco Paulo chego aos 19 anos.

Aprendi a sentar-me a uma mesa, a comer de faca e garfo, a usar um guardanapo, olhe que ao pé de mim ninguém limpava a boca com as costas da mão, o que é que julga? Aprendi a ler e a escrever, a fazer contas, aqui nas redondezas, quando cheguei, só eu sabia ler, escrever e contar dinheiro....
- E então não me pergunta como é que aqui vim parar?
- Pois ia agora mesmo fazer-lhe essa pergunta. Como foi?
Então, chego aos 19 anos e as duas senhoras, olhe que eu julgava que elas eram a minha família, também nunca mais mais olhei para trás, nunca mais as vi,  nem queria, diga-seem verdade. Mandaram-me sentar na sala, deram-me uma sacola com umas coisitas lá dentro e disseram: Francisco Paulo tens quase 20 anos vais ter que deixar esta casa e ir à tua vida.
Tens que te fazer à vida que já és um homem feito. Aqui dentro deste saco tens um dinheirito para os primeiros dias e alguma roupa. E assim me vi na rua. Agarrei-me ao que foi aparecendo até chegar a esta aldeia. Gostei disto aqui. Fiz de tudo. Trabalhei muito até conseguir ser marceneiro cursado. E fui e dos bons. Trabalhei em muitas obras e numa delas encontrei uma garota que dava serventia, ladina, airosa não obstante a dureza do trabalho, desembaraçada e esperta. Reparei logo nela. A menina Rosalina, despertou-me para a vida.

Passei a seguir o trabalho dela e sempre que podia uma conversita mais aconchegada. Talvez até exagerasse na serventia que ela me dava. Tive que inventar muitos pretextos para que ela confiasse em mim. Sempre no maior respeito, ela a tratar-me por senhor Paulo e eu por menina Rosalina.

Um dia, vencendo o embaraço, perguntei-lhe, sem grande convicção, se queria casar comigo e ela disse, sim senhor Paulo, pois até quero. Os preparativos para a nossa vida comum foram muito simples. À excepção da vontade não tínhamos mais nada. Assim juntámos os poucos trapitos de ambos. Uma alma generosa ofereceu-nos, em jeito de prenda, um cobertor para nos abrigarmos do frio.

Reparando que o nosso cozido perdia a graça e arrefecia, atalhou, vou-lhes só contar como foi a nossa primeira noite e depois, comam, comam que este é o melhor cozido aqui das redondezas - pois então, estávamos no mês de Dezembro.

Muito frio que por aqui quando faz frio, é frio mesmo, não são lá as aragens de Lisboa. Fomo-nos deitar e cada um se chegou mais para a ponta do colchão, no chão, ao mesmo tempo que tentávamos que o cobertor, um pouco curto e estreito para dois corpos, nos resguardasse do frio. Fomo-nos chegando, um pouco mais, mas não o suficiente para nos resguardar do frio até que, lá pela madrugada, ela me disse:
- ó senhor Paulo, morro de frio, parece-me que temos que entrar em mais intimidades. Pois sim menina Rosalina eu chego-me mais para junto de si .... deu uma gargalhada sonora, e acrescentou em jeito de ponto final - e foi assim.

 Ela já partiu e eu ainda fico por cá mais uns tempinhos, mas sei que lá em cima alguém me espera. Do cozido à portuguesa nem falo, vamos lá para a próxima semana.


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