domingo, 24 de setembro de 2017

HOJE QUERO FALAR DAQUELE TEMPO... Fernanda Lopes























Hoje quero falar daquele tempo,
dos meus pensamentos,
da confusão que tudo me fazia
e ninguém me respondia.

Um dia escutei alguém
que falava e percebi tudo.

Descobri que mais e melhor entenderia
quando soubesse ler e escrever.
Mas a escola ainda estava tão longe do meu horizonte.
Tudo o que eu sabia
era andar, correr, cantar, brincar
e até sabia falar com grande desembaraço,
não esquecendo que também era perita
a medir a força do braço
e ganhava sempre ao meu avô.

mais tarde vim a descobrir
que era ele que fingia não ter força
e a desistir maravilhosamente
para me ver saltar de contente.

Era um encanto o meu avô.
Um homem de semblante terno,
trato cordial e fraterno,
Carpinteiro de profissão.

tinha como alcunha “o Manhoso”,
não por ser matreiro ou vaidoso,
não, o meu avô era esperto
e não poucas vezes
era procurado por “ letrados”
para resolver problemas
de conhecimento técnico.

Na verdade o meu avô
era um habilidoso,
“engenhocas”. como se dizia.

Outros ainda,
atreviam-se a reconhecer nele um curioso,
uma alma contemplada com um dom.

A este propósito
era frequente depois de jantar
ouvi-lo comentar algumas dessas visitas
que apelidava de “santas ignorâncias”.


ou então,
quando se tratava de resolver questões de trabalho,
dizia simplesmente “
- e foram estas criaturas à escola”

A minha avó Piedade,
mulher austera por feitio e não defeito,
raramente esboçava
uma expressão de compreensão
com os petizes como eu.

Tudo o que fazíamos
era motivo de uma vontade indisfarçável
de um qualquer castigo
ao que o meu avô contrapunha dizendo
- ó mulher, deixa os meninos,
são tão pequenos ainda,
só querem brincar,
têm muito tempo para ser adultos.

Fria com o meu avô,
nunca consegui assistir a um beijo
mesmo que furtivo,
nem mesmo espreitando
ou ficando à escuta
quando se retiravam para o quarto.

Um dia depois de jantar
aproveitando a presença dos dois por perto
perguntei à minha mãe bem alto
mas esperando a reacção
ou resposta de qualquer um
que satisfizesse a minha inocente curiosidade:

- os avós não dão beijos?
Riu-se a minha mãe.

A minha avó repreendeu-me dizendo
- isso lá são conversas de criança?

Só o meu avô
ficou à espera do beijo que pediu
e que eu nunca tive a alegria de testemunhar.

Mas não passou muito tempo,
assisti com tristeza às lágrimas
que vi cair no rosto da minha avó
e tive a certeza
que elas eram também lembranças
de beijos trocados
e um deles seria
o da minha inocente pergunta
naquela noite depois de jantar:
- Os avós não dão beijos?

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