domingo, 19 de janeiro de 2020

34 POEMAS de Alive Vieira





























POEMAS DE
ALICE VIEIRA


  1. Sempre amei por palavras muito mais
  2. É claro que sei dizer palavras calmas
  3. Eu gostava de poder dizer
  4. Que limbo é este onde
  5. É preciso agora ter muito cuidado com as palavras
  6. Ensinou-me um amigo há muitos anos
  7. é tão fácil amar lugares
  8. Entrego-te as palavras mais brandas
  9. Desenha com a ponta dos teus dedos
  10. Desces as escadas
  11. As madrugadas ainda guardam
  12. Da vila só recordavam
  13. Aquele que o meu coração ama
  14. desenho
  15. aniversário
  16. Cantilena muito aguda
  17. Lição
  18. Aquele que o meu coração ama
  19. a língua sobre a pele o arrepio
  20. entre a saliva e os sonhos
  21. sempre amei por palavras muito mais do que devia…
  22. 11.
  23. Aquele que o meu coração ama
  24. O que levam de nós as coisas velhas que
  25. Estendo na cama o corpo que há-de ser
  26. A concha perfeita das tuas mãos
  27. Poema à noitinha... Alice vieira
  28. A musa em greve
  29. Fanal
  30. Parafuso
  31. Ano passado em marienbad
  32. Akhmátova
  33. Naquele tempo toda a cidade ardia
  34. É tão difícil dizer amo-te


POEMAS DE
ALICE VIEIRA

SEMPRE AMEI POR PALAVRAS MUITO MAIS
in: O que Dói às Aves, Caminho, 2009

Sempre amei por palavras muito mais
do que devia
são um perigo
as palavras
quando as soltamos já não há
regresso possível
ninguém pode não dizer o que já disse
apenas esquecer e o esquecimento acredita
é a mais lenta das feridas mortais
espalha-se insidiosamente pelo nosso corpo
e vai cortando a pele como se um barco
nos atravessasse de madrugada
e de repente acordamos um dia
desprevenidos e completamente
indefesos
um perigo
as palavras
mesmo agora
aparentemente tão tranquilas
neste claro momento em que as deixo em desalinho
sacudindo o pó dos velhos dias
sobre a cama em que te espero.

É CLARO QUE SEI DIZER PALAVRAS CALMAS
é claro que sei dizer palavras calmas
e amar devagar os que chegam a meu lado
e recordam o meu nome de todas as maneiras
com que ao redor da vida o foram construindo

é claro que sei inventar cantigas breves
das que à meia-noite perdem as notas mais vibrantes
quando fogem precipitadamente dos nossos bolsos

é claro que sei voltar a casa e abrir a porta
e fingir que tudo está perfeito sobre a mesa
e os objectos guardam os lugares de sempre
e eu continuo na moldura com um riso de quinze anos
tropeçando no teu ar sério quase a sair do retrato

é claro que sei passar os dedos devagar pelo teu corpo
nas noites em que chegas e dizes já não chove
como se colocasses no meu colo uma prenda de natal
e pudesses apagar a tempestade
no brevíssimo instante em que a vida se resume
aos nossos olhos tentando
acreditar que é cedo

é claro que sei esperar por ti
sabendo desde sempre que não vens e mesmo assim
escolho sem sobressalto a música perfeita
de te acolher no sono com o enevoado rumor
de todos os encontros improváveis

é claro que sei as palavras mesmo que as não diga
que misturas ao longe com os afiados gumes
com que tentas a custo perdoar-te
as horas roubadas a todos os seus legítimos donos

é claro que sei fechar as janelas às armadilhas
que as noites constroem dentro dos teus medos
e donde não consegues regressar
e com sorte encontrar numa cómoda
qualquer coisa tua que esqueceste
na pressa da saída e pensar
que foi por mim que ela apareceu
em tão estranho lugar

- mas quando entre os ruídos da noite
a tua ausência é a única divisão da casa
que razoavelmente partilhamos
tudo isso serve desculpa de muito pouco

EU GOSTAVA DE PODER DIZER
Eu gostava de poder dizer
que entrei no teu corpo como um pássaro
espreitando através de invisíveis ruínas
e que o som da tua voz bastava
para me salvar

mas de nada serve inventar palavras
quando as palavras que inventamos
não passam de frágeis lugares de exílio
dos gestos inventados fora de horas
delimitando o espaço de tantas mortes prematuras
de que jurámos ressuscitar um dia

-quando os deuses se lembrassem
de acordar ao nosso lado
QUE LIMBO É ESTE ONDE
Que limbo é este onde
Pelo meio da noite às vezes aparecias
Mas apenas para desfazer esquecidos silêncios
Porque bem sabes ao terceiro Whisky
O amor é sempre eterno
É PRECISO AGORA TER MUITO CUIDADO COM AS PALAVRAS
É preciso agora ter muito cuidado com as palavras
pronunciá-las olhando sempre    demoradamente      para o lado
como se fossem os nomes escancarados
de amantes clandestinos
que é preciso guardar na carteira
porque nunca se sabe      tu o disseste    quem
ao fim da tarde nos poderá denunciar

por isso para cada sílaba terei agora de encontrar
um silêncio novo
porque do teu amor não sobrou absolutamente nada
que possa encobrir nos meus olhos
os olhos que foram teus e em que
todas as madrugadas eu nascia

queria apenas por momento entender
o que foi que te fez esquecer tão depressa
o tempo que habitámos no lume das noites que
pareciam só nossas

quando nos debruçávamos no parapeito das madrugadas
e a cidade espalhava veneno
nas margens do rio

ouve:

também tu morres agora todas as noites
um pouco mais

e em todos os lugares que te perderam
é triste o som das águas

ENSINOU-ME UM AMIGO HÁ MUITOS ANOS
Ensinou-me um amigo há muitos anos que
as feridas de verão não cicatrizam nunca
e que por elas passamos a olhar quem nos amou
com feroz impiedade

era nisto que eu pensava no momento em que
entraste no quarto e eu nem reparei nas tuas rugas
e atirei para longe a recordação que viera
com a súbita crueza do calor e murmurei
o tempo tudo apaga ou
outra banalidade semelhante
enquanto esperava pelos teus braços que em tempos
não precisavam de memórias antigas para
desenharem correctamente o caminho do amor
na minha pele

mas tu acendeste um cigarro e disseste
deixei-te há muito numa cidade em chamas e
não consigo encontrar-te

e o teu corpo era uma estátua branca
ao fundo da ponte que em tempos
atravessávamos a correr
as tuas mãos enterradas no lodo das margens
como nos escombros das ruas desaparecidas

e repetias

por mais que eu queira
desculpa
não consigo

e a nossa cama era uma casa assombrada
por todas as vozes que    há muito
trazias contigo
esperando a hora certa de acordar
e tudo lentamente se desfocava
como nos retratos que as famílias guardam
para provarem mais tarde que havia morte
para além da vida

as escadas a darem para a rua

o quarto a desaguar nos castanheiros

a mesa a cheirar a jornais velhos

e uma manhã sem ninguém para quem nascer

e então eu quis agarrar pelo menos aquele
último rasto do teu cheiro do teu cigarro
quis poder viajar ainda
pelas cicatrizes longas da nossa vida

mas tudo subitamente morria

tudo morria e eu
olhava para o monte de cinza
à beira da cama

pensando apenas na hora
em que alguém ia entrar no quarto
para limpar tudo

É TÃO FÁCIL AMAR LUGARES
é tão fácil amar lugares
que não existem

recordar praças     e pontes    e travessas
onde nunca morremos por ninguém

quartos na penumbra de estores corridos
sobre a sonolência dos gatos em Agosto
onde nunca chegámos atrasados

o tampo de mármore de mesas de café
onde as nossas mãos não se esconderam
por alguém ter entrado antes de nós

é tão fácil lembrar nomes      e rostos   e destinos
e colocá-los em nossos ombros     e festejar com eles
as luminosas horas em que a vida
nos rodeava a cintura como um amante possessivo
e nós repetíamos o nome das cidades
onde nada disso tinha acontecido

é tão fácil assim
dizer adeus

sabendo que deus nem sequer assiste
à despedida

ENTREGO-TE AS PALAVRAS MAIS BRANDAS
entrego-te as palavras mais brandas
que entre os meus dedos construí
para alimentar de ti os recantos da casa
invadindo o coração da noite

entrego-te as palavras com a redonda luz
das maçãs sobre a mesa e o rumor da água
rasgando o caminho da paixão
em horas que já não conseguimos sem ajuda   recordar
mas que habitam a mais frágil memória de nós próprios

palavras jorrando dos meus olhos
invadindo-te o sono e tropeçando
nas esquinas das frases que decoro
ao longo dos veios da tua pele

e a verdade é que nunca terei outra história
para além da que nos aconteceu
e que ficamos à espera de um dia perceber melhor

porque nunca ninguém se prepara convenientemente
para a chegada do amor
e ele é sempre um convidado estranho
sentado em silêncio na penumbra da sala
olhando os quadros o chão o tecto

como um velho parente da província
com medo de dizer o que não deve

DESENHA COM A PONTA DOS TEUS DEDOS
desenha com a ponta dos teus dedos
as fronteiras exactas do meu rosto
as rugas os sinais a cicatriz que ficou da infância
o lento sulco das lâminas onde no peito
se enterra o mistério do amor

e diz-me
o que de mim amaste noutros corpos
noutras camas noutra pele

prometo que não choro mas repete
as palavras um dia minhas que sem querer
misturaste nas tuas e levaste
com as chaves de casa e os documentos do carro
-e largaste sobre a mesa com o copo de gin a meio
na primeira madrugada em que me esqueceste

DESCES AS ESCADAS
desces as escadas

devagar
devagar
devagar

agarras o corrimão porque
nem sempre os 20 anos ressuscitam
quando se quer

perguntas pelo tempo e
pelas velhas tias     queres saber
(apenas por delicadeza    é evidente)
se já morreram todas ou ainda resistem
dalgumas trocas o nome      ou nem o lembras

tomas o remédio     tosses levemente
culpas o trabalho pelos
telefonemas que falhaste e
prometes que amanhã vai ser diferente

conto uma história que não ouves
paro a meio de uma frase
que não seguias

olhas o relógio    e procuras
cada vez com mais dificuldade
o que irás dizer à entrada de casa

o silêncio enreda-se
na tua língua
esqueceste as palavras no fundo da gaveta
onde um dia guardaste o meu retrato     e hoje
guardas os comprimidos para dormir

sobes as escadas e
desapareces

devagar
devagar
devagar

AS MADRUGADAS AINDA GUARDAM
As madrugadas ainda guardam
a primeira palavra que dizias
antes do café

e vai ser difícil despegar-me dela
porque nada deixaste de sílabas e sons
que não fosse o eco das tuas mãos
nas minhas pernas

vai levar muito tempo
antes que tudo volte a ter
a cor parda dos embrulhos
esquecidos nas cómodas

antes que os quartos deixem
de gritar na insónia das noites
como crianças abandonadas

DA VILA SÓ RECORDAVAM
(Caminha, 1992)

1.
da vila só recordavam
as cortinas de renda branca na janela
as pedras as pedras a areia muito branca
os cabelos grisalhos diante do televisor
as pessoas no terreiro

falavam espanhol as pessoas
traziam crianças loiras que choravam
era meio dia
o relógio da torre andava sempre certo
o empregado recebia a despesa
paga em pesetas porque a fronteira era perto
atravessava-se o rio e era lá

mas o ferry-boat não partia nunca
porque o rio estava assoreado
e era preciso uma draga e isso
custava o dinheiro que ninguém tinha

por detrás das cortinas as velhas
cheiravam a cera a madeira queimada a
muitos anos de espera
nem elas sabiam porquê ou por quem

em dias de nortada o vento
trazia-lhes o cheiro da praia
a que já não iam ou iam
sempre vestidas de negro

e voltavam para casa com os ouvidos cheios
dos gritos dos rapazes que lhes chamavam
gaivotas negras

2.
O primeiro homem que as beijou
cheirava a cordas e a peixe
mas depois na missa

ouviram dizer que era pecado e
nunca mais voltaram à praia
ou se voltaram
nem sequer olharam de frente para o mar
com medo das tentações

uma noite a caravana do circo
levou consigo o homem que
cheirava a cordas e a peixe
dizem que um dia voou do trapézio
e se esfumou no ar
mas outros afirmam que é tudo mentira
e que os tigres o comeram
num dia em que a ração demorou a chegar
e o calmante não funcionou
outros ainda
que anda vestido de malabarista
envergonhadamente animando feiras e
 crianças gordas
só elas sabem que o homem que
cheirava a cordas e a peixe
procurou asilo dentro dos seus corações
dividindo-se entre ambas
e é ele que olha as ruas
de cada vez que elas abrem as janelas
e a cortina branca fica a balançar
com o vento norte

AQUELE QUE O MEU CORAÇÃO AMA
in: O que Dói às Aves, Caminho, 2009

Aquele que o meu coração ama
não encontra em lado algum
o incenso que de meus olhos rompe
para ensinar a prender o corpo das mulheres
abandonadas fora de horas
às portas da cidade

mas sabe que para todas as distâncias
há uma ave enlouquecendo quem parte
do tempo
e a túnica que dispo entre os seus dedos
é a espada que os reis ungiram
para enfrentar a ameaça das manhãs
em que tudo acorda

DESENHO
in: Rimas Perfeitas, Imperfeitas e Mais-que-Perfeitas

No papel branco
desenharei um Sol
bem amarelo
e no alto dum monte
um enorme castelo
entre campos lavrados
e povoarei a terra
de cavaleiros e de soldados.

Às nuvens darei
a forma de gente
(e haverá quem pense
que são gente a sério…) e ouvir-se-á
pela noite fora
os uivos dos lobos
até vir a aurora

que desfará o medo
e o mistério…

ANIVERSÁRIO
in: Rimas Perfeitas, Imperfeitas e Mais-que-Perfeitas

Hoje terás
um dia diferente.
Pela janela o sol
parecerá mais quente,
da cozinha virá
cheiro a bolos de mel
e os teus irmãos
(será o João?
será o Manel?)
para ti terão
um belo presente.
Tua avó tocará
“parabéns a você”
(no velho piano
meio desafinado...)
soprarás as velas
e os teus pais dirão
que por ser um dia
muito especial
poderás deitar-te
um pouco mais tarde
que o habitual
“Mas amanhã”
dir-te-ão também
- “voltará tudo
a ser igual!”
O bolo comido
as prendas guardadas
fechado o piano
Só tu estarás
mais velho um ano.

CANTILENA MUITO AGUDA
in: Livro com cheiro a baunilha

O Rui mais a Salomé
fazem enorme banzé
pertinho do balancé
e chega então o Tomé
que veio ontem da Guiné
em cima de um jacaré
e com um grande pontapé
manda pelo ar o boné
que cai junto do café
onde está o avô Zé
a beber um capilé
e a gritar assim é que é
amanhã vou para Loulé
às costas de um chimpanzé
olaré olaré olaré.

LIÇÃO
Um destes dias
chamarás por mim
e dirás:
-a partir de agora,
não poderemos perder tempo.

A mesa estará livre
para os livros e os cadernos
e a tua voz fará coro
com o tiquetaque do relógio
por onde irão passar
as primaveras e os invernos

Rirei
da pressa que terás
de me ver crescer
E escreverei com cuidado
as palavras
que escolherás
para me mostrares o mundo
pai
mãe
terra
casa
pão
irmã

Isto é tudo o que hoje sei.
O resto
aprenderei amanhã

AQUELE QUE O MEU CORAÇÃO AMA
in: O que Dói às Aves

Aquele que o meu coração ama
não encontra em lado algum
o incenso que de meus olhos rompe
para ensinar a prender
o corpo das mulheres
abandonadas fora de horas
às portas da cidade

mas sabe que para todas as distâncias
há uma ave enlouquecendo quem parte
do tempo
e a túnica que dispo entre os seus dedos
é a espada que os reis ungiram
para enfrentar a ameaça das manhãs
em que tudo acorda

in: Dois corpos tombando na água

A língua sobre a pele o arrepio
Os teus dedos nas escadas do meu corpo

As lâminas do amor o fogo a espuma
A transbordar de ti na tua fuga

A palavra mordida entre os lençóis
As cinzas de outro lume à cabeceira

Da mesma esquina sempre o mesmo olhar:
Nada do que era teu vou devolver.

entre a saliva e os sonhos há sempre
uma ferida de que não conseguimos
regressar

e uma noite a vida
começa a doer muito
e os espelhos donde as almas partiram
agarram-nos pelos ombros e murmuram
como são terríveis os olhos do amor
quando acordam vazios

in: O QUE DOI AS AVES (Caminho, 2009)

Sempre amei por palavras muito mais
do que devia
são um perigo
as palavras
quando as soltamos já não há
regresso possível
ninguém pode não dizer o que já disse
apenas esquecer e o esquecimento acredita
é a mais lenta das feridas mortais
espalha-se insidiosamente pelo nosso corpo
e vai cortando a pele como se um barco
nos atravessasse de madrugada
e de repente acordamos um dia
desprevenidos e completamente
indefesos
um perigo
as palavras
mesmo agora
aparentemente tão tranquilas
neste claro momento em que as deixo em desalinho
sacudindo o pó dos velhos dias
sobre a cama em que te espero

esperar que voltes é tão inútil como o
sorriso escancarado dos mortos na necrologia dos jornais

e no entanto de cada vez que
a noite se rasga em barulhos e
um telefone se debruça de
uma qualquer janela

sinto que ainda ficou uma
palavra minha esquecida na
tua boca e que
vais voltar
para
a
devolver

Aquele que o meu coração ama
ergueu-se do meu leito e nele esqueceu
as repetidas promessas de um regresso
em que aos meus olhos ensinaria
a única maneira de esconder
o prenúncio de invisíveis desertos

aquele que o meu coração ama
afogou em noites de leite e mel
o rasto dos oásis que
teciam a sede do desejo no meu peito
e bebeu neles as horas de um destino que
me acenava de muito longe

aquele que o meu coração ama
partiu às cegas sem descobrir
as húmidas palavras que se espalham
à sombra dos ciprestes
contando os minutos que faltam
para a vertigem do corpo onde o aguardo

O QUE LEVAM DE NÓS AS COISAS VELHAS QUE
in: Olha-me como quem chove

o que levam de nós as coisas velhas que
deitamos fora porque as casas são
pequenas e os objectos agora
envelhecem mais depressa que nós

nas casas velhas
nós éramos outros  mas
os lençóis de linho sobreviviam
a todos os mortos e passavam
de corpo para corpo e
eram sempre os mesmos
e envelheciam em arcas de cânfora
que os avós tinham trazido de macau
e nunca tínhamos tido tempo de
esvaziar completamente

mas agora tudo é feito
para morrer depressa  e
sem deixar mágoas nem vestígios

que fazem dentro das nossas vidas
gravadores de fita máquinas de escrever faxes
cassetes onde aprisionámos momentos e rostos
que julgávamos eternos
dvd's que pensávamos rever
até ao fim dos nossos dias

(o senhor da sucata estava feliz
agradeceu muitas vezes
enquanto amontoava tudo deixando
a minha casa subitamente maior

- ou muito mais pequena

conforme o ponto de vista)
  
ESTENDO NA CAMA O CORPO QUE HÁ-DE SER
in: Olha-me como quem chove

Estendo na cama o corpo que há-de ser
o porto a que esta noite vais chegar.
E entre névoas e ventos hei-de ver
o barco dos teus dedos ancorar
na margem mais secreta do desejo.
E há-de haver um mapa ali por perto
que te leve à enseada do meu beijo
e à fogueira de tudo o que está certo.
E na respiração da tua boca
bebo o grito da terra sempre pouca
para a noite em que ficarmos sós.
Mas o corpo descansa apaziguado:
sei que o sol já repousa do meu lado
e que o teu rio já chegou à foz.

A CONCHA PERFEITA DAS TUAS MÃOS
In: Dois Corpos Tombando na Água

sei um jeito de te fazer ficar
murmuravas nas manhãs em que nascíamos
ávidos de nós
e éramos tão novos
e faltávamos às aulas

posso ter esquecido admito muita coisa
caminhos promessas lugares a cor
da saia que vestia no dia em que não voltei
muita coisa admito menos
a concha perfeita das tuas mãos sobre o meu peito
o cheiro das laranjeiras as cartas
em papel tão adolescente e azul
o esplendor de Junho à mesa familiar
os espelhos garantindo-nos um lugar único na casa

posso ter esquecido admito muita coisa
menos os nossos corpos simultâneos
às portas do amor

no arco da minha pele que húmidamente
se abria ao lume da tua língua

nessas manhãs em que jurámos
não morrer nunca

POEMA À NOITINHA...
"Eu gostava de poder dizer
que entrei no teu corpo como um pássaro
espreitando através de invisíveis ruínas
e que o som da tua voz bastava
para me salvar

mas de nada serve inventar palavras
quando as palavras que inventamos
não passam de frágeis lugares de exílio
dos gestos inventados fora de horas
delimitando o espaço de tantas mortes prematuras
de que jurámos ressuscitar um dia

- quando os deuses se lembrassem
de acordar ao nosso lado"

A MUSA EM GREVE
no dia em que trombamos
demoraram-se as armas, não houve tempo
para habitar as furnas, para a fuga do que
sugerisse nuvens
                                                                           
alguém, pela fratura do vidro, previa
de nosso contato
o retorno risonho da pergunta de Pasternak
“querida, querida, que milênio soa lá fora?”

me abandona pelo cansaço
sem saber que o poeta não pode
desdenhar o olhar-infante sobre o mundo

para que o Éden seja possível como imagem

quando você me disse
“os poemas saturam”
eu estive devastado

o que será que significa este horror ao excesso?
por que será que você não pode
com o total desprezo pela experiência?

isso também pode ser
um novo tipo de escuta

mas me agradam
as formas antigas

querida, querida
será um chamado do tempo?

as Musas diletas
precedem a queda

e assim espero nunca-nunca
perder a voz

FANAL
nunca mais diga palavra
nunca mais sombra
ou anteparo
Musa venal
te adivinho
na fúria da guerra
na vanguarda operária
enquanto me interessam
Blok
o destino espiritual
da Rússia
se algum dia
você atendesse
à oficialidade
de Musa
se algum dia
chorasse o tempo
sob minha
urna funerária
eu seria
humano
restituído o fluxo
natural das coisas
devolvido à seiva
como se a linguagem
não fugisse
à experiência
como se o poema
merecesse
do amor
a represália

PARAFUSO
(meia dúzia de estudantes
de língua e literatura
à espera de que eu seja
um palhaço das alturas
procurando em mim
a diferença
sem saber
do sempre ridículo
dos hábitos
sem saber que hoje
foram 7 xícaras de café
e que há duas semanas
só consigo
escutar pós-punk
e goth rock
sem vomitar)

eu sei o meu lugar:
perder o controle
mas afunilar
caixas, mercadorias
anatómicas
à esquerda
direita
à revelia
reconhecidos
o arbitrário do eixo

o inevitável da ferrugem

ANO PASSADO EM MARIENBAD
a literatura não basta

ou basta sim
mas como
uma dormência
embrionária
um apelo
do útero
uma festa
nas lentes

vi uma foto da Emmanuelle Riva com 50 anos
veja como o tempo escarrou na cara da Nouvelle Vague
veja como estamos fodidos

a literatura não basta
é como um projeto
de mortes intervalares
sugestões derrogatórias

- quem derrotará os fascistas?

e se fôssemos todos
poetas armados
e não soubéssemos
as coordenadas precisas
na arena de combate
e se na batalha final
fôssemos todos
um exército de poetas
(à espera dos bárbaros)
da Revolução Permanente
quem derrotará os fascistas?

quem vai parir
o concerto
(em trítono)
do cosmos?

AKHMÁTOVA
todas as amantes são
Fata Morgana
mas são (principalmente) seus nomes
por isso nunca espere a maciez
do que mora além das cadências
necessárias
por isso nunca espere que surjam
ditirambos
de seus narizes aduncos
por isso
se eu digo pausado o nome
da dileta
miro imediato o Cáucaso
se eu digo devagar a - li - ce
o coro responde

alice, alice, por que você tem esse nome?

NAQUELE TEMPO TODA A CIDADE ARDIA
in: Dois Corpos Tombando na Água

naquele tempo toda a cidade ardia e nós
ardíamos com ela mas sabíamos
que havia de chegar uma noite
em que as amarras (ou a pátria tanto faz)
seriam mais fortes e entraríamo
sem silêncio no quarto
inventando palavras tão transparentes para a nossa vida
que hoje tenho dificuldade em encontrá-las
para as colocar em seus devidos lugares

tínhamos então a idade
de tudo o que nos acontecia pela primeira vez
protegidos pela sombra dos castanheiros de maio
e ainda que por breve tempo chegámos a acreditar
que um dia nos iríamos de novo amar ali
exactamente ali
entre o rio as pontes  s estátuas
a praia que roubávamos ao asfalto
onde os dias pareciam sem desvio

e a dona do hotel a prometer-nos
domingos de sol

É TÃO DIFÍCIL DIZER AMO-TE
in: Os Armários da Noite

É tão difícil dizer amo-te
murmurava ontem um amigo
a propósito de coisa nenhuma e muito menos
de amor

estávamos ambos entre papéis e tintas
com a casa onde nasceu Pessoa mesmo em frente
e talvez por isso
a questão das palavras o atormentasse
daquela maneira

passou os dedos pelos desenhos de um livro
e ficou a olhar para o largo que
se avistava da janela
quem sabe se
procurando os desajeitados beijos de Ofélia
nas lajes ressequidas pelo verão

é tão difícil dizer amo-te
repetiu e
ficou outra vez em silêncio
atordoado de sol e de heterónimos
então eu disse que isso era apenas
pelo simples facto de a palavra
ser acentuada na primeira sílaba
o que não dava jeito nenhum a pronunciar
ele riu e ficámos a discutir se
a palavra seria grave ou esdrúxula até que
fechado o livro e arrumados os papéis
ele declarou
adoro-te é bem melhor

e saímos para a rua felizes
por termos encontrado tão facilmente
a solução do problema


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