domingo, 19 de janeiro de 2020

FÁTIMA - Ievtuchenko





























Ievtuchenko, o grande e contraditório poeta soviético, estive em Portugal em 1967 (em pleno tempo de fascismo) e deu um memorável recital de poesia. Depois deslocou-se a Fátima. Do que viu e sentiu expressou-o neste poema:

Estive na festa de Fátima. Vendo como se empurravam nas bermas
cães, burros, jornalistas, embaixadores, turistas,
e ao longo das estradas, de joelhos ligados,
em todo o asfalto, de cabeça perdida o povo se arrastava.

Com imprecações, gritos, lágrimas, gemidos,
por poças, montes de esterco, cacos de vidro,
arrastava-se para que a bênção de Fátima
viesse ao povo e o pudesse ajudar.

Arrastam-se camponeses, amargura no rosto enrugado
como haveria na mãe de Jesus Cristo
quando lhe devolveram, por fim, o filho crucificado,
tocando-lhe ao descer o seu corpo branco da cruz.

Arrastavam-se Madalenas, torciam-se, gemiam, ofegavam,
e semeavam lágrimas, confiando nessa sementeira,
mas só sorriam anjos rubros e impertinentes
arrastando a sementeira às costas, como rapazes traquinas.

E nos automóveis pretos, louvados os Apóstolos,
com buzinas que passavam pelos saloios arrastando-se na poeira,
corriam, como para o futebol, os ideólogos do andar de rastos,
os polícias de casse-tête sendo super-indulgentes.

E no estádio, com a voz forte da Phillips,
o comércio da fé deixava cair a sua palavra quente
sobre o mar de cabeças confusas e chapéus de jornal,
oscilando trémulas como um prato de pudim.

Apelava o comércio, estendendo as mãos bem cuidadas,
na altura em que nas estradas de Deus pejadas,
que se arrastavam ao longe sobre joelhos invisíveis,
o poente se mostrava através duma neblina como sangue através de ligaduras.

E o povo arrastava-se. E os tristes camponeses não sabiam
que os pastores de rebanho, de submissa e simples fé,
não só não podem — tudo podem os grandes no mundo! —
como não pensam tirar os seus filhos da cruz...

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